quarta-feira, 25 de abril de 2007

A Escola e Abril


Com 16 anos, começava a perceber que as questões da liberdade e da democracia não eram aqui respondidas como noutros países. Uma Professora de História, cujo nome não recordo, tinha já tocado algumas franjas da minha consciência, sem a despertar. Afirmava-se moçambicana e trazia-nos notícias de eleições em Inglaterra e França, sugerindo-nos que as comparássemos ao que acontecia em Portugal.


Onde estava no 25 de Abril? Lembro, difusamente, que me levantei para ir para a Escola (já então entrava às 8h30) e a primeira coisa que a minha mãe me disse foi que algo tinha acontecido durante a noite, pois o meu irmão mais velho (foi preso, uns anos antes, por ter acendido um isqueiro sem ter licença para tal) telefonou do emprego, onde já estava, dizendo que havia tanques na rua.
Ambos consideravam que seria melhor eu ficar em casa e não ir, nesse dia, à Escola. Recusei a ideia e saí, não notando nada de especial nas ruas – para além do sorriso que habitava quase todos os rostos que comigo se cruzavam.
Andava no 6º ano, o primeiro do curso complementar dos liceus, hoje correspondendo ao 10º ano do Ensino Secundário.

O ensino centrava-se na Escola pública – as escolas privadas eram residuais, alguns colégios com resposta, sobretudo, para os internatos – que se dividia em Liceus e Escolas Comerciais e Industriais. Muito diferentes no ensino ministrado e nos Alunos que as frequentavam, as últimas visavam responder às necessidades de formação dos jovens para integrar, com rapidez, o mundo do trabalho citadino, ou prepará-los para frequentar os institutos superiores, que produziam técnicos de qualificação secundária, face às Universidades. Os Alunos eram oriundos de famílias de baixos rendimentos, procurando reproduzir a estratificação social, em função da origem.
Já os Liceus, como o que eu frequentava, procuravam dar alguma instrução às raparigas e preparar os seus Alunos para ingressar nas Universidades, pelo que era frequente encontrar aí os filhos das famílias mais abastadas, lado a lado com alguns felizardos, que eram empurrados pelos pais em busca de um futuro diferente, mais próspero. Foi o que aconteceu comigo, único rapaz lá de casa que frequentou este tipo de Escola.

Poucos chegavam ao Curso Complementar (Secundário). Em termos comparativos, hoje serão dez, vinte vezes mais os que estudam no 10º, 11º e 12º ano, em comparação com 1974. Se, hoje, pouco mais de 30% dos Alunos que estão no Secundário o terminam, imaginem o ridículo número que, então, conseguia esse feito.

Na Escola ensinava-se, não existia o conceito de aprendizagens, como hoje se entende. O Professor era o mestre, que destilava os conteúdos através de uma única forma – a exposição oral. Nós, os Alunos, bebíamos a sua sabedoria, sem a questionar. Se tivéssemos dificuldades, ninguém se preocupava com isso. Cada um que se desenrascasse. Mais uma vez, os Alunos com maiores recursos tinham respostas a que todos os outros não acediam, como acontecia com as explicações, fenómeno permanentemente presente, embora só para alguns.
Obter o Curso Complementar dos Liceus era um feito, só superado pelos poucos que entravam nas Universidades. Nestas, poucas eram as que estabeleciam quotas de entrada – os candidatos eram, na maior parte das vezes, em número inferior às vagas existentes.

Não me quero alongar, quero apenas que conheçam as duas realidades, que o 25 de Abril separou: antes, era a pobreza, o desconforto, a visão estreita da vida e do mundo, que acabava nas fronteiras com Espanha. Lembro-me muito bem da casa em que vivia. Tínhamos televisão, máquina de costura, … e nada mais. A roupa era lavada no tanque, ao frio e à chuva, as compras eram para o dia ou para amanhã, porque não havia frigorífico, e as casas de banho despejavam para fossas sumidouras, que eram despejadas, acompanhadas de um pivete marcante, quando estavam cheias.


Na rua onde morava, a maior parte das famílias vivia como nós ou em piores condições. Nem dois anos passados, frigorífico, máquina de lavar roupa, aquecedor, iogurteira, esquentador ou cilindro, são bens comuns em qualquer casa, por pobre que seja. Nem sequer resulta de se ser mais rico, de ter mais dinheiro do que se tinha, no início dos anos setenta; é toda uma mentalidade que se altera, uma nova forma de abordar a vida, um acesso ao conforto que antes estava vedado, por um regime que se orgulhava de estar só. Infelizmente, estava.

1 comentário:

pandacruel disse...

Cada época tem a sua contemporaneidade. Pelo que vemos hoje em Santa Comba, há um 24 de Abril tremendamentamente amordaçado nestes anos todos. Pelo que vimos anteontem, com a visita guiada, pelo antigo preso político (anos!) Saldanha Sanches, ao jornalista da SIC NOTÍCIAS, Mário Crespo, chega-se à conclusão que «a longa noite fascista» ainda não foi explicada - foi só, talvez, exorcismada. oxalá que o feitiço não se vire contra o feiticeiro, até ao tempo dos bisnetos desta geração, ao menos (tb. já não temos ideia dorida do equivalente passado). Quimeras?